COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – IMÓVEL COM VALOR SUPERIOR A 30 SALÁRIOS MÍNIMOS – TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE – NECESSÁRIO ESCRITURA PÚBLICA

DECISÃO

Vistos, etc.

RUI REZENDES FABRÍCIO DA SILVA apresentou SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA INVERSA, com lastro no art. 198 da Lei 6.015/73 em face de MARIA DO CARMO DE TOLEDO AFONSO, Oficiala do 1º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Criciúma-SC objetivando a procedência do presente provimento para possibilitar a admissão de contrato particular de compra e venda como documento hábil a gerar registro de transmissão da propriedade perante a serventia competente.

Cientificada via malote judicial, com envio datado de 13/12/2019, a Oficiala do 1º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Criciúma-SC, doravante suscitada, apresentou resposta, pugnando em suma pela rejeição dos pedidos ventilados na suscitação de dúvida apresentada, mantendo-se as exigências nas notas apresentadas ao suscitante.

Em parecer, o Ministério Público opinou pela improcedência da dúvida para que o “Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda” não seja considerado título translativo, devendo a propriedade ser transferida por escritura pública.

Os autos vieram conclusos.

É o breve relatório.

Decido.

O caso em tela versa sobre dúvida inversa suscitada por Rui Rezendes Fabrício da Silva na qual se insurge contra atos supostamente abusivos e contrários à lei praticados pela Oficiala titular do 1º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Criciúma-SC quando ao requerer registro da transmissão de propriedade sobre bem imóvel fundado em documento particular de compra e venda, fora exigido escritura pública porquanto o bem imóvel objeto de registro alcança valor superior a 30 salários mínimos vigentes à época do pleito efetuado junto à serventia.

De início, o sistema jurídico brasileiro relacionado à constituição ou transmissão de direitos reais em geral não decorre unicamente do acordo de vontade entre as partes; depende, para a efetivação da transmissão, a averiguação e superação de etapas as quais a lei coloca como inerentes ao processo. Diferentemente do direito francês, por exemplo, cuja sistemática prevê o próprio contrato como instrumento apto à transmissão da propriedade, no Brasil, em se tratando de direitos reais sobre imóveis (como no caso da controvérsia ora analisada), há a necessidade da perfectibilização do registro da operação na matrícula do imóvel operada por meio das serventias competentes. Com isso, busca-se garantir a publicidade dos atos e também a segurança jurídica. Nessa senda, o art. 108 do Código Civil preceitua que “a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”. Com isso, ciente da previsão em lei e da expressa menção à necessidade de se haver escritura pública para a transferência do direito real ora perseguido (propriedade sobre bem imóvel) não há possibilidade de albergar a pretensão do suscitante.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina assim tem entendido:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. INCONFORMISMO DOS AUTORES. DEMANDADOS TITULARES DE FRAÇÃO IDEAL DE IMÓVEL QUE DIVIDIRAM SUA PROPRIEDADE FATICAMENTE EM DUAS PORÇÕES DE TERRAS E ALIENARAM-NAS AOS AUTORES E A UM DOS RÉUS, TENDO A ESTE SIDO TRANSFERIDA, PERANTE O SERVIÇO NOTARIAL, A TOTALIDADE DA PROPRIEDADE EXCLUSIVAMENTE. CONTRATOS CUJA VALIDADE FORAM CONSTATADAS NA ORIGEM. SENTENCIANTE QUE, CONTUDO, RECONHECEU TER A OBRIGAÇÃO ESTABELECIDA EM FACE DOS AUTORES NATUREZA PESSOAL, ASSIM COMO A INVIABILIDADE DE ALTERAR O REGISTRO DO BEM, IMPINGINDO AOS RÉUS ALIENANTES A SATISFAÇÃO DA OBRIGAÇÃO, CONVERTIDA EM PERDAS E DANOS. PRETENDIDA, EM SEDE DE RECURSO, A IMPOSIÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE TRANSFERIR PARCELA DE IMÓVEL ADQUIRIDO PELOS REQUERENTES. IMPOSSIBILIDADE. PROPRIEDADE DE BEM IMÓVEL QUE SE TRANSFERE MEDIANTE INSTRUMENTO PÚBLICO. EXEGESE DOS ARTS. 108 E 1.245 DO CÓDIGO CIVIL. ATUAL TITULAR REGISTRAL QUE CELEBROU NEGÓCIO DE ACORDO COM AS FORMALIDADES LEGAIS. VALIDADE, CONTUDO, DO INSTRUMENTO PARTICULAR QUE FUNDA O PEDIDO DOS AUTORES PARA ESTABELECER OBRIGAÇÕES ENTRE OS NEGOCIANTES. ASSUMIDA, NA OCASIÃO DA FORMALIZAÇÃO DO PACTO, OBRIGAÇÃO FUTURA DE TRANSFERÊNCIA PERANTE OFÍCIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. PROVIDÊNCIA QUE SE AFIGURA INVIÁVEL ANTE A TITULARIDADE REGISTRAL POR PESSOA DIVERSA DA OBRIGADA (VENDEDOR). INEXISTÊNCIA DE PEDIDO ANULATÓRIO DO INSTRUMENTO PÚBLICO PELOS INTERESSADOS (VENDEDORES). AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE DERRUAM O REGISTRO NOTARIAL PERFECTIBILIZADO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA IMPERATIVA. ALMEJADA A CONDENAÇÃO DOS APELADOS POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. DOLO PROCESSUAL NÃO CARACTERIZADO. INOCORRÊNCIA DE QUALQUER DAS HIPÓTESES DO ARTIGO 80 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 0005008-35.2010.8.24.0075, de Tubarão, rel. Des. Rosane Portella Wolff, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 15- 08-2019). (grifou-se)

Na fundamentação do aresto acima explicitado, a Desembargadora relatora ainda destacou que “em se tratando de bens imóveis, a transferência se dá mediante o “registro do título translativo no Registro de Imóveis”, conforme determina o art. 1.245 do Código Civil. Além disso, a norma suso aludida determina que transações que versam sobre direitos reais relativas a imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente no território nacional devem ser efetivadas por escritura pública para que sejam válidas (art. 108).” Em seus argumentos, o suscitante destaca dispositivos da legislação civil que, em tese, autorizariam a transferência de titularidade por simples instrumento particular.

Todavia, cumpre salientar que o assunto ora discutido versa sobre a possibilidade de conferir eficácia translativa ao compromisso particular de compra e venda firmado entre o suscitante e a empresa Construtora Locks LTDA. Nesse viés, conforme se denota, o mencionado instrumento trata-se de “instrumento de promessa de compra e venda” garantindo o direito real à aquisição do imóvel.

Ocorre que a cláusula oitava do compromisso de compra e venda dispõe que os promitentes compradores outorgarão escritura pública de compra e venda com alienação fiduciária como assim descrito:

A escritura pública de compra e venda com alienação fiduciária será providenciada e arcada unicamente pelos “PROMITENTES COMPRADORES”, as quais, no prazo de 30 (trinta) dias contados do recebimento das chaves do imóvel deverão cumprir com tal obrigação, sob pena de serem tomadas as medidas judiciais cabíveis, bem como, de terem que pagar a multa ajustada no § 4º desta cláusula.

Assim, não obstante o art. 38 da Lei 9.514/03 estabelecer que os contratos de alienação fiduciária eventualmente possuirão efeito de escritura pública, é certo que o instrumento em análise apenas trata do compromisso de compra e venda, o qual será ratificado mediante escritura pública outorgada pelos compradores consoante descrito na cláusula contratual acima.

Nesse viés, não há como considerar o simples compromisso de compra e venda como instrumento sucedâneo da escritura pública justamente porque até então existirá quando muito, o direito real do promitente comprador do imóvel previsto no art. 1.225, VII do Código Civil. Eventual transmissão da propriedade, no caso ora dirimido, só terá lugar com a escritura pública de compra e venda com alienação fiduciária. Da mesma maneira, impossível interpretar o art. 221, II da Lei 6.015/73 como exceção à regra da necessidade de escritura pública porquanto o próprio dispositivo ressalta que os escritos particulares devem ser aqueles “autorizados por lei”. Inclusive, o parecer do Ministério Público colaciona importante entendimento doutrinário afirmando que tais documentos, isto é, os escritos particulares devem ter sua força prevista pela própria lei, o que não é o caso do instrumento particular de compromisso de compra e venda mencionado pelo suscitante.

Como se não bastasse, a bem elucidativa manifestação do Ministério Público, a qual utilizo como razão de decidir, destaca que o contrato apresentado não pode ser considerado como título translativo, pois apenas se presta a registrar transações imobiliárias e não é revestido das formalidades legais, sequer registrado no Cartório competente e realizado por meio de escritura pública, requisito essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à transferência de direitos reais sobre imóveis.

Nesse viés, considerando a transferência da propriedade e que o valor do imóvel supera o limite de 30 salários mínimos previsto no art. 108 da legislação civil, é imperioso que o negócio se revista das solenidades preconizadas pelo direito positivado, muito em função do princípio da publicidade e da preservação da segurança jurídica.

ANTE O EXPOSTO

Julgo improcedente os pedidos deduzidos na presente SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA INVERSA por RUI REZENDES FABRÍCIO DA SILVA para declarar, diante do caso específico em questão, a impossibilidade de se considerar o Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda como título translativo a fim de possibilitar o registro da alteração da propriedade relativa ao imóvel de matrícula 17.891 perante o 1º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Criciúma-SC, havendo a necessidade respeito às solenidades concernentes aos negócios jurídicos envolvendo imóveis com valor superior a 30 salários mínimos.

Sem custas judiciais e honorários advocatícios, consoante o art. 207 da Lei 6.015/73.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Oportunamente, arquive-se com as cautelas de estilo.

Documento assinado eletronicamente por ELIZA MARIA STRAPAZZON, JUÍZA DE DIREITO DE ENTRÂNCIA ESPECIAL, em 22/06/2020, às 15:52, conforme art. 1º, III, “b”, da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site http://sei. tjsc.jus.br/verificacao informando o código verificador 4707022 e o código CRC 052C6616. Secretaria do Foro da Comarca de Criciúma, aos 6 de julho de 2020. Luana Soares Souza, Chefe de Secretaria.