COMPRA E VENDA – FRAÇÕES IDEAIS INFERIORES À FMP – INDÍCIOS DE PARCELAMENTO IRREGULAR DO SOLO – DÚVIDA PROCEDENTE
SENTENÇA
1.RELATÓRIO Trata-se de procedimento de suscitação de dúvida aforado pela Oficial designada do Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Cunha Porã, por meio do qual pretende ver dirimida dúvida acerca de registro de escritura pública de fração de imóvel em regime de condomínio rural. Houve impugnação por intermédio de advogado constituído (I – doc. 5474647).
O Ministério Público apresentou parecer, manifestando-se pela manutenção das exigências levantadas pela registradora (I – doc. 5531958).
Vieram os autos conclusos.
2.FUNDAMENTAÇÃO
As exigências efetivadas pela suscitante, adianta-se, encontram-se em harmonia com o ordenamento jurídico vigente e devem ser mantidas. Em tela, da análise da escritura pública de compra e venda, verifica-se que os condôminos Similda Otto e Erio Otto pretendem alienar a Graziele Canello e a Adriano Roberto de Meira a fração de 6.000 m² pertencente ao lote rural de matrícula n. 4.160, com área total de 75.019,00 m², do qual os referidos alienantes são proprietários da fração ideal de 12.003,80 m², em regime de condomínio com outros 8 (oito) coproprietários (11 (onze) considerados os respectivos cônjuges). A oficial Registradora denegou o acesso do título, sob o fundamento de que inferior ao módulo rural e gerador de condomínio sem asseguração da destinação agropecuária, bem como de que, possivelmente, importa em parcelamento irregular do solo, indicando a exigência de providenciar-se o parcelamento do solo, na modalidade loteamento (I – doc. 5438640 e doc. 5438630).
Da análise da matrícula do imóvel e da aludida escritura pública, é possível perceber que a intenção das partes é a alienação de espaço certo e delimitado, visto que: a) o imóvel rural em referência possui outros coproprietários, a maioria deles em razão de transmissão a título causa mortis (herança), sendo que, em relação aos proprietários Ilmo e Isoldi, qualificados na matrícula como operador de máquinas e do lar, houve a aquisição de fração de 3.700 m² do bem por força de negócio jurídico inter vivos (contrato de compra e venda – R.11) em janeiro de 2015, e, em relação ao proprietário Edio Maihack, qualificado na matrícula como operário, igualmente houve a aquisição de fração de 6.001,90 m² do bem por força de negócio jurídico inter vivos (contrato de compra e venda – R.12) em setembro de 2015; b) os alienantes constantes da escritura pública não são todos os proprietários, mas tão somente os condôminos
Similda e Erio, com a anuência dos demais condôminos, e, por consequência, denota a delimitação do objeto e a redução da fração dominial apenas daqueles vendedores; c ) o objeto descrito no referido instrumento público de compra e venda é “a fração de 6.000 m², sem edi?cações”, não mencionando constituir-se de fração ideal; d) a fração em exame constitui área muito aquém do módulo rural/fração mínima de parcelamento; e e) os adquirentes qualificam-se, conforme consta da aludida escritura, como professora e pintor, profissões – assim como aquelas indicadas nos referidos negócios ocorridos em 2015 – dissociadas das atividades rurais.
No ponto, não obstante a parte interessada tenha afirmado, em sede de impugnação, que inexiste descrição de limites físicos da área e ausente divisão ou desmembramento e, ainda, que as partes declararam na escritura que o imóvel destina-se única e exclusivamente para exploração agropecuária, os elementos constantes do aludido instrumento negocial e da matrícula do imóvel não levam a tal conclusão, como explicitado acima. Outrossim, tais alegações não vieram acompanhadas de qualquer elemento mínimo documental que lhes dê suporte (art. 373, II, CPC). Imprescindível anotar, nesse rumo, que é vedado o registro de escritura pública cujo objeto seja fração ideal de imóvel delimitada/ localizada, justamente porque, em se tratando de fração representativa de percentual correspondente ao todo, não pode ter delimitação certa. Desse modo, imperioso ressaltar, ainda, que, a alienação de 6.000 m² da fração ideal de 12.003,80 m² cria novo fracionamento em duas áreas distintas, o qual não atende às dimensões mínimas de fracionamento do solo rural.
É de se mencionar, ainda, que as alienações anteriormente efetivadas, de frações igualmente reduzidas, não têm o condão de chancelar o presente negócio jurídico e registro, mas, ao revés, ratificam a probabilidade concreta de loteamento irregular sobre o imóvel, o que igualmente impede o ato registral em tela.
A legislação veda o fracionamento de imóveis rurais em parcelas menores que as fixadas nas normas de regência, não se podendo alienar como se autônoma fosse fração inferior àquela definida como piso para o parcelamento do solo rural.
Nessa toada é a redação do art. 65, caput, da Lei n. 4.504/1964 (“Estatuto da Terra”) ao dispor: “O imóvel rural não é divisível em áreas de dimensão inferior à constitutiva do módulo de propriedade rural”. Por seu turno, a norma de regência do Sistema Nacional de Cadastro Rural, Lei n. 5.868/1972, prescreve:
Art. 8º – Para fins de transmissão, a qualquer título, na forma do Art. 65 da Lei número 4.504, de 30 de novembro de 1964, nenhum imóvel rural poderá ser desmembrado ou dividido em área de tamanho inferior à do módulo calculado para o imóvel ou da fração mínima de parcelamento fixado no § 1º deste artigo, prevalecendo a de menor área.
§ 1º – A fração mínima de parcelamento será:
a)o módulo correspondente à exploração hortigranjeira das respectivas zonas típicas, para os Municípios das capitais dos Estados;
b)o módulo correspondente às culturas permanentes para os demais Municípios situados nas zonas típicas A, B e C;
c)o módulo correspondente à pecuária para os demais Municípios situados na zona típica D.
[…]. (grifei)
Em complemento, a Instrução Especial do INCRA n. 50, de 26 de agosto de 1997, que regulamentou a matéria, definiu a Fração Mínima de Parcelamento – FMP para o Município de Cunha Porã/SC em 2 (dois) hectares, ou seja, 20.000,00 m² (vinte mil metros quadrados).
Ademais, dispõe o art. 713 do Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça:
Art. 713. É vedado ao oficial proceder ao registro de:
I – venda de parcela de loteamento ou desmembramento não registrado;
II – fração ideal de condomínio não aprovado pelo município;
III- fração ideal com localização, numeração e metragem certa;
IV- qualquer forma de instituição de condomínio ordinário que desatenda aos princípios da legislação civil ou que, de modo oblíquo e irregular, caracterize parcelamento do solo urbano; e
V- escritura pública ou contrato particular que verse sobre promessa de compra e venda de propriedade imobiliária e implique parcelamento irregular do solo urbano ou fracionamento incabível de área rural. (destaquei)
E ainda, preconiza o art. 716 do mesmo Código: “Somente se admitirá formação de condomínio em imóvel rural por ato inter vivos, quando preservada e assegurada sua destinação para fins de exploração agropecuária ou extrativa”.
A Corte de Justiça Catarinense já se manifestou no sentido de inadmitir o fracionamento inferior ao módulo rural: “Em sendo a área do imóvel de propriedade do impetrante inferior ao módulo rural da região, inexiste, nos termos da legislação de regência (art. 65, caput e § 1°, do Estatuto da Terra/Lei n. 4.504/64 e art. 8°, caput e § 1º, da Lei do Sistema Nacional de Cadastro Rural/n. 5.868/72), direito à pretensão de torná-la autônoma em relação à gleba onde está inserida” (Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2014.053432-2, de Joaçaba, rel. Des. João Henrique Blasi, da Segunda Câmara de Direito Público, j. 14.10.2014).
Portanto, resta claro que não cabe a individualização do imóvel na forma pactuada e o respectivo registro imobiliário, por desrespeito às normas legais, o que, na situação exposta, constitui fracionamento incabível de área rural.
Nesse mesmo sentido, destacam-se os seguintes julgados:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO AFASTADA. PARCELAMENTO DE SOLO URBANO. IMÓVEL RURAL. LOTEAMENTO IRREGULAR. NULIDADE DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA RECONHECIDA. SENTENÇA MANTIDA. 1.
Rejeitada a preliminar de intempestividade do recurso, pois os litisconsortes possuem procuradores diferentes, aplicando-se o prazo em dobro, nos termos do artigo 229 do Código de Processo Civil. 2. Trata-se de Ação Civil Pública, baseada em Inquérito Civil, ajuizada em face do proprietário registral e dos adquirentes, que teve por objeto a apuração de parcelamento ilegal de propriedade rural situada no Município de Barão/RS, com o reconhecimento da nulidade dos contratos de compra e venda pela sentença de primeiro grau. 3. O conjunto probatório dos autos comprova que o proprietário registral, ao comercializar lotes de imóvel de sua propriedade, não se atentou às exigências da legislação vigente. Desvirtuação da destinação rural com a utilização da área como sítio de lazer pelos adquirentes. Lotes com porções inferiores a um módulo fiscal, que foram comercializados sem autorização da municipalidade e sem o prévio registro junto à matrícula do imóvel. Inteligência dos artigos 3º e 37 da Lei nº 6.766/79 e art. 8º da Lei nº 5.868/72. Sentença mantida. PRELIMINAR REJEITADA. APELO DESPROVIDO. UNÂNIME.(TJRS, Apelação Cível, Nº 70078319233,
Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em: 28-11-2018). (destaquei) AÇÃO DE DIVISÃO DE IMÓVEL HAVIDO POR HERANÇA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS. PRETENDIDA A DIVISÃO DO IMÓVEL EM ÁREA INFERIOR AO MÓDULO RURAL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO RECONHECIDA DE OFÍCIO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO. ÔNUS SUCUMBENCIAIS SUPORTADOS PELOS AUTORES. RECURSO PREJUDICADO. Caracteriza-se juridicamente impossível o pedido de divisão de imóvel rural em área inferior ao módulo rural estabelecido (TJSC, Apelação Cível n. 2011.081842-5, de Joaçaba, rel. Des. Jaime Luiz Vicari, da Sexta Câmara de Direito Civil, j. 28.2.2013). (destaquei)
CIVIL. AÇÃO DE DIVISÃO DE IMÓVEL RURAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DOS AUTORES. IMÓVEL INDIVISÍVEL. METRAGEM DOS LOTES REMANESCENTES INFERIOR AO MÓDULO RURAL DA CIDADE. EXEGESE DO ART. 65 DO ESTATUTO DA TERRA. PRECEDENTES DESTA CORTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO
DESPROVIDO.A teor do art. 65 do Estatuto da Terra, o imóvel rural não pode ser desmembrado em frações inferiores ao módulo rural estabelecido para a região. (TJSC, Apelação Cível n. 2006.004810-1, de Maravilha, rel. Des. Fernando Carioni, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 04-05-2006). (TJSC, Apelação Cível n. 0309264-12.2017.8.24.0039, de Lages, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 17-12-2019). (destaquei)
Ressalte-se que a autorização do registro em descompasso com as normas legais, implica, na espécie, ofensa ao regular ordenamento e o ocupação do solo, conforme Política Agrícola Nacional, e ao direito imobiliário e registral, bem como possível lesão a direito potencial de terceiros, a exemplo dos coproprietários e confrontantes do bem. Assim, reputa-se escorreita a decisão denegatória do registro da escritura pública de compra e venda exarada pelo Ofício do Registro de Imóveis, de modo que a procedência da suscitação é medida impositiva.
3.DISPOSITIVO
Ante o exposto, com fundamento no art. 198 da Lei n. 6.015/1973, julgo PROCEDENTE a dúvida formulada pela registradora designada do Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Cunha Porã no presente procedimento, para DECLARAR válida a exigência referente ao título protocolado sob o n.
26.416 (escritura pública de compra e venda), nos termos da fundamentação supra.
Custas pelo interessado (art. 207, Lei 6.015/1973).
Publique-se, inclusive via DJe (caderno administrativo). Registre-se. Intimem-se a suscitante, o Ministério Público e o interessado (este por meio da respectiva procuradora – doc. 5474651).
Após o trânsito em julgado, procedam-se às anotações e comunicações necessárias e, nada sendo requerido, arquivem-se com baixa.
Documento assinado eletronicamente por NICOLLE FELLER, DIRETORA DO FORO, em 30/05/2021, às 19:28, conforme art. 1º, III, “b”, da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site informando o código verificador 5562432 e o código CRC B7A37F24. 0012184-17.2021.8.24.07105562432v4