COMPRA E VENDA – INSTRUMENTO PARTICULAR – MANDATÁRIO ALIENOU O IMÓVEL POR VALOR INFERIOR AO MENCIONADO NA PROCURAÇÃO – RATIFICAÇÃO DO ATO PELOS MANDANTES – DÚVIDA JULGADA IMPROCEDENTE
DECISÃO
Vistos, etc. RELATÓRIO Trata-se de suscitação de dúvida apresentada pela Oficial Interina do 2º Ofício de Registro de Imóveis de Blumenau. Arguiu que Rodolf Karl Konell apresentou em 07.05.2020, contrato de compra e venda com garantia de alienação fiduciária – FSH, dos imóveis de matrícula nº 23.585 e 23.683, cujo valor de venda constante do título era de R$ 190.000,00 (cento e noventa mil reais). Tendo a venda se operado mediante procuração por escritura pública outorgada pelos proprietários registrais, com poderes para a venda dos imóveis mencionados pelo valor de R$ 230.000,00 (duzentos e trinta mil reais), teria a Delegatária exigido do interessado a apresentação de nova procuração ratificando o negócio jurídico pelo valor indicado.
A parte suscitada apresentou impugnação sustentando, em suma, que a procuração pública foi lavrada tendo em conta o valor do imóvel (R$ 230.000,00), porém, dada a situação econômica dos proprietários residentes na Itália, o negócio jurídico haveria sido concluído pelo valor R$ 190.000,00, isto é, com a anuência destes.
Salientou que após realização do negócio recebeu as chaves do imóvel e reside desde então no local, e que é terceiro de boa-fé. Disse que entrou em contrato com os vendedores, na Itália, e que este estão impedidos de ir ao Consulado (situado a 300 km de distância de sua localidade) para firmarem a procuração por instrumento público, diante da pandemia de Covid-19, razão pela qual haveriam firmado ato de ratificação da compra e venda por instrumento particular.
O Ministério Público, então, manifestou-se pela apresentação do referido termo de ratificação.
Este juízo acolheu o parecer ministerial, intimando o interessado para juntar o documento, o que foi prontamente atendido.
Em seu novo parecer ministerial, o parquet opinou pela improcedência da dúvida registral, por entender que o ato de ratificação sanou o vício apontado.
Após análise do ato de ratificação juntado, este juízo entendeu por prudência, intimar novamente a parte requerente para que juntasse o ato de ratificação com firma reconhecida.
A parte se manifestou juntando referido termo.
É o relatório.
Passo a decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
A suscitação de dúvida imobiliária encontra previsão no caput do art. 198, da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos. Do preceito legal extrai-se que “Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimí-la, obedecendo-se ao seguinte: […]”.
Segundo o escólio de Luiz Guilherme Loureiro “Dúvida é o procedimento administrativo por meio do qual o apresentante de um título registral, não se conformando com as exigências formuladas pelo registrador ou com a decisão que desde logo negue o registro, requer ao juiz competente para que este, após proceder à requalificação do documento, determine que este tenha acesso ao fólio real. (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 8 . ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 655)” .
Caso o apresentante não concorde ou não possa satisfazer a exigência do oficial, poderá requerer a declaração de dúvida, caso em que o título, com a questão suscitada, será remetido ao juízo competente para dirimi-la (Art. 198, incisos I a IV, Lei nº 6.015/73).
Segundo os ensinamentos de Alvim Neto, a dúvida registrária consiste em:
[…] uma objeção fundada, um obstáculo motivado, à prática do registro (lato sensu, ou seja, abrangendo a averbação), um juízo – em rigor, concludente de alguma forma de argumentação – negativo de uma qualificação. […] A dúvida registrária corresponde, materialmente e de modo próprio, a essa recusa, embora a designação de comum se estenda, já agora impropriamente, aos motivos da recusa. Nesse sentido, a dúvida é a negativa de um registro e também a razão pela qual se julga que um dado título não pode inscrever-se no Registro Imobiliário […].
[…]
Com efeito, a norma do art. 198. da LRP refere-se a uma exigência a ser satisfeita, ou seja, a um motivo a que se ancora a negação do registro pretendido. Motivo (ou razão da dúvida: inc. IV, art. 198, LRP), que o registrador indicará por escrito, para propiciar, desse modo, a garantia de aferição da razoabilidade e da juridicidade da recusa registral. Com isso, enseja-se o direito de submetimento à jurisdição […].
(ALVIM NETO et al. Lei de Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 1068-1069)
Acerca do provimento judicial previsto no caput do art. 198 da Lei nº 6.015/73, e que pode ser alcançado por meio desta via administrativa de jurisdição voluntária, convém destacar que “[…] No julgamento da dúvida registral, o magistrado limita-se a aferir a regularidade do pedido, no campo da legalidade formal, aplicando a solução que reputa mais adequada, sob o exame exclusivo dos aspectos relativos às normas que regem os registros públicos.” […] (REsp 1570655/ GO, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 23/11/2016, DJe 09/12/2016).
Portanto, neste procedimento não há possibilidade de discussão que transborde estes limites. A sentença, de natureza administrativa (Art. 204, Lei nº 6.015/73), não soluciona propriamente um conflito entre as partes, tampouco chancela ato jurídico que necessariamente depende da participação estatal para sua validade. O seu escrutínio limita-se a considerar o requerimento, o questionamento do registrador, e a possível irregularidade apontada na dúvida, que, se reconhecida, pode inviabilizar o registro ou a averbação.
Com efeito, o pedido formulado na inicial e sustentado na causa de pedir narrada, para ser admitido, deve objetivar, em termos mais simples, a aferição da legalidade das exigências realizadas pelo oficial de registro, não se prestando à constituição de direitos: “[…] O procedimento de suscitação de dúvida não se presta à decretação do cancelamento de registro já efetuado; objetiva, sim, decisão judicial sobre a legitimidade ou ilegitimidade das exigências impostas pelo oficial como condição do registro. Logo, sua instauração é sempre anterior ao registro do título; se esse já se deu, deve o interessado, que discordar de sua regularidade, pleitear-lhe a anulação pelas vias próprias, e não suscitar dúvida perante o juiz, pois dúvida, mesmo, não há” (AC n.º 2002.025901-8, Des. Jaime Luiz Vicari). (TJSC, Apelação Cível n. 2010.017369-6, de Balneário Camboriú, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 08-06-2010)”.
Feitas as considerações precedentes, passa-se ao exame do pedido formulado.
O parecer ministerial merece ser acolhido quanto à improcedência da dúvida registral.
Examinando a documentação que instrui os autos, verifico que em 29.04.2020, foi firmado contrato de compra e venda de imóvel, mútuo e alienação fiduciária em garantia no SFH, entre os vendedores, Paolo Mara e Roseli Mara, representados por Rosangela Kaestner Hasse (irmã de Roseli), e o comprador, Rodolf Karl Konell. O Contrato teve por objeto a venda dos imóveis de matrícula nº 23.683 e 23585, ao preço de R$ 190.000,00 (cento e noventa mil reais).
A procuração pública datada de 07.05.2019 dá conta de que os proprietários outorgaram poderes à sua mandatária, para a venda dos referidos imóveis, ao valor de R$ 230.000,00. É de se notar, portanto, que houve divergência entre o ato praticado pela mandatária o a manifestação de vontade expressa pelo mandantes.
No entanto, o novo ato de ratificação do negócio jurídico juntado pela parte requerente (evento 5400376), o instrumento particular datado de 20.11.2020, com firma reconhecida, dá conta de que os proprietários e mandantes, Paolo Mara e Roseli Mara, confirmaram o ato praticado por sua mandatária quanto a venda dos imóveis pelo preço de R$ 190.000,00.
Neste ponto, cabe ressaltar que o contrato de compra e venda firmado pela mandatária não é nulo (ineficaz), mas anulável, nos termos do art. 119, do Código Civil: “É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”, podendo o vício ser convalidado posteriormente pela manifestação de vontade dos outorgantes, in verbis:
Código Civil: Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.
Art. 173. O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo.
[…]
Art. 662. Os atos praticados por quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes suficientes, são ineficazes em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se este os ratificar.
Parágrafo único. A ratificação há de ser expressa, ou resultar de ato inequívoco, e retroagirá à data do ato.
Segundo o escólio de Nelson Nery Júnior:
Para que possa ocorrer a confirmação devem estar presentes os seguintes requisitos: a) existência de um contrato anulável; b) o ato de confirmação deve dizer respeito a um determinado contrato anulável; c) deve haver, pelas partes contratantes, ciência exata do vício que se pretende sanar; d) os contratantes devem ter conhecimento do seu direito de anulação do contrato viciado (NERY JÚNIOR, Nelson. Código Civil comentado. 8. ed. Rev. Ampl. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011. p. 383-384).
Portanto, havendo posteriormente os mandantes confirmado a declaração de vontade manifestada por sua mandatária quanto ao negócio jurídico entabulado, declarando expressamente a sua anuência quanto ao valor da venda, no montante de R$ 190.000,00, tenho por bem em considerar sanado o vício que impedia o registro do ato translativo da propriedade. O reconhecimento das firmas dos mandatários, por sua vez, confere a segurança jurídica da autenticidade do ato praticado, isto é, de que de fato, a autoria do ato de ratificação advém dos mandatários.
Convém ressaltar que o fato de as assinaturas do documento de ratificação terem sido reconhecidas em país estrangeiro não impede a sua admissão como meio de prova no Estado Brasileiro, visto que, de acordo com o art. 13 do Decreto-Lei nº 4.657/42 (LINDB) “A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça”. In casu, a prova documental de ato praticado perante serventia registral é admitida no Estado Brasileiro, de modo que uma vez praticado segundo a lei do país em que ocorreu, e não ofendendo a soberania nacional, a ordem pública, e os bons costumes (art. 17, da LINDB), a sua admissão é impositiva.
Deste modo, é de se reconhecer a possibilidade de registro da propriedade imobiliária dos imóveis de matrícula nº 23.585 e 23.683, decorrente do contrato de compra e venda com garantia de alienação fiduciária – FSH, porquanto há impeditivo à sua satisfação.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, resolvo o mérito da lide e julgo improcedente a presente suscitação de dúvida, para reconhecer a possibilidade de registro da propriedade imobiliária dos imóveis de matrícula nº 23.585 e 23.683, decorrente do contrato de compra e venda com garantia de alienação fiduciária – FSH.
Não cabe condenação dos interessados ao pagamento das custas. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Intime-se a parte ativa para, no prazo de 15 (quinze) dias, retirar os documentos originais necessários ao registro, devendo o cartório, nos termos do art. 239 do Código de Normas, proceder ao desentranhamento dos documentos, mediante substituição por cópia dos originais e certidão de retirada nos autos.
Transitado em julgado, cumpridas as formalidades legais, cientifique-se a Oficial Registrador do 2º Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau/SC, e, após, arquivem-se com as cautelas de estilo.
Blumenau (SC), 29 de abril de 2021.
Raphael de Oliveira e Silva Borges
Juiz de Direito