PARCELAMENTO DO SOLO – ÁREA VERDE – DOMÍNIO PÚBLICO – INALIENABILIDADE

DECISÃO

Vistos etc.

I – RELATÓRIO.

Raquel Lemos da Costa Amorim, oficial registradora de imóveis, apresentou suscitação de dúvida, conforme requerido por Eberson Lacerda Soares, aduzindo, em síntese, que o suscitado apresentou escritura pública de compra e venda lavrada em 04.04.2019 no 1° Cartório de Notas da Comarca de Timóteo/MG referente à aquisição de um imóvel urbano constituído da quadra 27, situado no “Loteamento Balneário Janaína”, Município de Balneário Gaivota, com área de 5.775,00m², matriculado sob o n. 60.906 do Cartório de Registro de Imóveis de Sombrio. Narrou que o registro do referido título restou impossibilitado em razão de constar nos documentos emitidos pelo Município de Balneário Gaivota que o imóvel se trata de “área verde”, o que levantou fundadas suspeitas de que a área pertence ao domínio público. Explicou que foram realizadas diligências e formalizada a exigência, porém não restou demonstrado de forma precisa e suficiente que o imóvel não integra o patrimônio do Município de Balneário Gaivota, motivo pelo qual o suscitado alegou que a exigência fere seu direito e, assim, postulou a suscitação de dúvida. Requereu o recebimento da presente suscitação de dúvida e a sua devida apreciação.

O procedimento de dúvida veio instruído com documentos.

O suscitado apresentou impugnação (evento 2747673) e juntou documentos (eventos 2747702 a 2747834).

Certificou-se a tempestividade da impugnação (evento 2747837 ).

O Ministério Público se manifestou pela procedência da dúvida, com a manutenção da negativa da oficial registradora de imóveis (evento 4283930).

Vieram, então, os autos conclusos.

É o relatório. Decido.

II – FUNDAMENTAÇÃO.

Trata-se de dúvida suscitada pela oficial registradora de imóveis desta Comarca em razão de requerimento protocolado por Eberson Lacerda Soares.

Inicialmente, convém pontuar que “a averbação e o registro de qualquer documento ou título no Registro de Imóveis deve se submeter ao procedimento atinente, sendo que incumbe ao oficial registrador verificar o preenchimento dos pressupostos à formalização do ato, sob pena de responsabilização” (TJRS, Apelação Cível n. 70078762002, Décima Nona Câmara Cível, rel. Des. Marco Antonio Angelo, julgado em 06-12-2018).

No caso dos autos, verifica-se que a qualificação registral do título apresentado pelo suscitado resultou negativa, conforme já se antecipou, tendo a oficial de registro de imóveis expedido nota devolutiva elencando a razão da recusa, qual seja, a existência de indicativos de que o imóvel em questão é um bem público e integra o patrimônio do Município de Balneário Gaivota.

Nesse contexto, após análise minuciosa da documentação trazida aos autos, entendo que assiste razão à oficial registradora de imóveis, uma vez que não existem dúvidas acerca da afetação do bem imóvel em discussão e de sua destinação pública, cuja propriedade pertence ao Município de Balneário Gaivota, de modo que a pretensão do suscitado vai de encontro às regras de alienação de bens públicos.

De acordo com o histórico registral trazido aos autos, observa-se que a quadra 27 do “Loteamento Balneário Janaína” – dentro da qual está inserida a área objeto da escritura pública apresentada pelo suscitado – teve destinação pública e foi considerada “área verde” desde sua concepção, senão vejamos: No registro do loteamento, efetuado em 24/07/1979, sob n° R.1 na matrícula 5.314, do Livro 2- Registro Geral desta Serventia, a Quadra 27 foi identificada como “ÁREA VERDE” (vide fl. 1 e f1.8v da matrícula), informação esta que também constava no Alvará de Aprovação para registro n° 005/79 de 20/02/1979, assinado pelo Prefeito da época, Sr. José João Scheffer, e ilustrada no desenho da planta assinada pelo representante do loteador, com firma reconhecida em 27/11/1978.

Analisando detidamente os demais documentos utilizados para registro do loteamento, apresentados em julho de 1979, foram constatadas as seguintes divergências de informações quanto a destinação/natureza da Quadra 27, senão vejamos: No memorial descritivo (fl. 51) consta que a quadra 27 “está reservada para uma rodoviária ou um mercadão a critério do proprietário”; na planta do loteamento aprovada sob n° 45 em 28/11/1978, as quadras 27 e 63 possuem destinação similar a praça ou área verde; no requerimento de aprovação do loteamento firmado pelo loteador ao Município, o qual possui anuência do prefeito municipal datada de 05/09/1978, consta a informação de que a Quadra 27 ficou “a critério do proprietário”.

No ato de aprovação do loteamento (Alvará n°. 005/79) consta que o município autorizou o registro do loteamento conforme planta apresentada, aprovada e arquivada na prefeitura. Em análise à planta arquivada no cartório, verifica-se na sua parte inferior a informação de que o loteamento possui 11.550,00m² destinados para praça e ilustradamente (desenho) as quadras 27 e 63 teriam destinação similares. Continuando o histórico de registro do loteamento, em 30/11/1988, 9 (nove) anos após o registro do parcelamento do solo, foi averbada (Av.2-5.314) a retificação do registro do loteamento com base nos seguintes documentos: i) novo Alvará de n°. 100/88, datado de 10/11/1988, assinado pelo Prefeito, Sr. Valério Bratti, no qual nada constou a respeito da destinação ou alteração da natureza da quadra 27; ii) nova planta, aprovada em 10/11/1988, pelo Diretor de Obras da Prefeitura Municipal; e iii) planilha de descrição das quadras que integram o ato de aprovação do Município. Nessa nova planta e planilha, a descrição/ilustração da Quadra 27 foi vinculada para “HOTEL”.

Posteriormente, em 18/03/2002, o registrador de imóveis, de ofício, procedeu outra retificação (Av. 3-5.314) do registro do loteamento, corrigindo o equívoco quanto a destinação da Quadra 27, que foi registrada como “área verde” (vide R.1-5.314), sendo que o correto seria a destinação para construção de uma rodoviária ou mercadão à critério do proprietário.

Essa retificação (Av.3-5.314) foi realizada desconsiderando a informação de destinação para hotel constante na nova planta aprovada pela Prefeitura em 10/11/1988, e na planilha de descrição das quadras que integra o ato de aprovação do Município.

Dias depois, em 29/03/2002, foi procedida a abertura de matrícula específica para a quadra 27, sem indicação de sua destinação ou finalidade (vide matrícula 60.906).

Em 03 de setembro de 2018, verificando a omissão quanto a destinação da quadra 27, utilizando a informação constante na nova planta aprovada pela Prefeitura em 10/11/1988 e na planilha de descrição das quadras que integra o ato de aprovação do Município, documentos esses arquivados quando do procedimento de retificação do loteamento (em 1988), realizamos a publicização da destinação da quadra 27, reservada para Hotel.

Voltando à qualificação registral do título apresentado para registro, somente em maio de 2019, por meio do Formulário de Informação de Transmissão Imobiliária -FITI e das Certidões Negativas de Débitos do Imóvel (cópias anexas), sobreveio a informação de que o imóvel negociado se trata de “área verde”, oportunidade em que levantamos a dúvida acerca da natureza jurídica do imóvel constituído pela Quadra 27, se pública ou privada.

Independente das modificações efetuadas ao longo dos trâmites loteamentários, relativamente à destinação da quadra 27 (dentre as quais: rodoviária, mercadão e hotel), sabe-se que a Lei n. 6.766/79 exige a indicação das áreas públicas que passarão ao domínio do município no ato de registro do loteamento (art. 9º, § 2º, inc. III, da LPSU), a partir do qual passam a integrar o domínio do município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo (art. 22 da LPSU).

Com o propósito de proteger o patrimônio público e resguardar os interesses sociais, a Lei n. 6.766/79 também dispõe que “os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento […]” (art. 17 da LPSU).

Desse modo, considerando-se que a quadra 27 tratava-se de “área verde” e tinha como destinação pública “praça”, tanto no ato de registro do loteamento, quanto na sua subsequente aprovação, conclui-se que o imóvel objeto da matrícula n. 60.906, ora localizado na quadra 27 do “Loteamento Balneário Janaína”, é um bem de uso comum do povo, a teor do disposto no art. 99, inc. I, do Código Civil.

Incide, assim, a regra insculpida no art. 100 do Código Civil, segundo a qual os bens públicos de uso comum do povo são inalienáveis, de modo que “enquanto se mantiver a afetação, o bem de uso comum e o bem de uso especial serão subordinados aos regimes jurídicos correspondentes. Como decorrência, serão considerados inalienáveis” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 708).

A propósito, mutatis mutandis, colhe-se a jurisprudência:

APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ALMEJADA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE PERMUTA DE IMÓVEL PÚBLICO. ÁREA VERDE.”[…] ‘O poder discricionário do Executivo tem seus limites contornados pela Constituição Federal, cumprindo ao Judiciário, quando provocado, decidir sobre a caracterização de desvio de finalidade do ato administrativo. “’Pauta-se pelo princípio da proporcionalidade o exame do mérito do ato administrativo, devendo-se respeitar a discricionariedade da Administração até o momento em que se transgride o razoável, traduzindo o ato manifesta lesão ao interesse público. “’Não pode a permuta de imóveis ser tratada como mera inversão financeira, uma vez que não envolve o dispêndio de dinheiro mas a cessão de bem imóvel integrante do patrimônio público. “’A área cedida ao Município quando da realização de loteamento, por força do art. 4º da Lei de Parcelamento do Solo, embora passe a integrar o patrimônio público, vincula-se ao interesse da ocupação racional e organizada daquela fração do espaço urbano. Serve, assim, à preservação de áreas de lazer, ao respeito ao meio ambiente e ao acesso comunitário aos serviços essenciais prestados pelo Poder Público. Inviável, por conseguinte, a transferência de tal área à propriedade privada’ (AC n. 2002.011186-0, Des. Pedro Manoel Abreu)” […] (TJSC, Apelação Cível n. 2014.041776-5, de Joinville, rel. Des. Jorge Luiz de Borba, j. 07/07/2015) […]. APELO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 0049083-81.2007.8.24.0038, de Joinville, rel. Des. Luiz Fernando Boller, Primeira Câmara de Direito Público, j. 16-05-2017). (Grifei).

Muito embora o Município de Balneário Gaivota tenha referido, por meio de sua Procuradoria-Geral, que “a quadra 27 não está gravada com destinação pública”, certo é que não apresentou qualquer justificativa e nem documentação contundente acerca desta afirmação. Não fosse o suficiente, extrai-se do Formulário de Informação de Transmissão Imobiliária (FITI) e das Certidões Negativas de Débitos do Imóvel (CNDIs) – documentação esta emitida pelo Município de Balneário Gaivota a pedido do suscitado – que o imóvel negociado se trata de “área verde”.

Por derradeiro, tratando-se de área pertencente ao domínio público, a matrícula n. 60.906 não deveria ter sido inaugurada em nome da loteadora, tampouco deveria ter sido efetuado o registro da compra e venda constante no primeiro ato registral. Na verdade, a referida matrícula deveria ter sido aberta em nome do Município de Balneário Gaivota, até porque na matrícula anterior já constava que a quadra 27 estava destinada para “área verde” (matrícula n. 5.314).

Nessas condições, portanto, revela-se acertada a negativa da oficial registradora quanto ao registro da escritura pública de compra e venda apresentada pelo suscitado, sendo certo que, se levado à efeito o registro nos moldes postulados pelo suscitado, se estará chancelando violação às regras de alienação de bens públicos, em flagrante burla ao disposto no Código Civil, na Lei de Parcelamento do Solo Urbano e nas normas da Corregedoria-Geral da Justiça.

Não se pode deixar de ponderar que erros pretéritos do registro não autorizam novos e reiterados equívocos, tampouco geram direito adquirido ao engano, restando, assim, evidente que os atos anteriormente praticados não socorrem a pretensão do suscitado (v. TJSC, Apelação Cível n. 0003006-41.2011.8.24.0016, rel. Des. Jorge Luis Costa Beber, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 01-12-2016).

Assim, impõe-se a procedência da dúvida.

III – DISPOSITIVO. DIANTE DO EXPOSTO, julgo procedente a presente suscitação de dúvida para, em consequência, manter a negativa exarada pela oficial registradora de imóveis quanto ao registro do título de transferência do imóvel de matrícula n. 60.906 do Cartório de Registro de Imóveis de Sombrio.

Sem custas (Circular CGJ n. 149/2019).

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Após o trânsito em julgado, restituam-se os documentos ao suscitado, independente de translado, dando-se ciência da presente decisão à Oficial de Registro de Imóveis para que a consigne no protocolo e cancele eventual prenotação (art. 203, I, da Lei n. 6.015/73).

Oportunamente, procedam-se com as anotações necessárias e arquivem-se os autos, dando-se as baixas de estilo.

Documento assinado eletronicamente por EVANDRO VOLMAR RIZZO, JUIZ DE DIREITO DE ENTRÂNCIA FINAL, em 23/04/2020, às 17:07, conforme art. 1º, III, “b”, da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site http://sei.tjsc.jus.br/verificacao informando o código verificador 4641533 e o código CRC 9A9A2411.